A burocracia, esse fogo que arde sem se ver
Todos nós vimos e vivemos de alguma forma o caos e a tragédia que se instalaram nos dois dias que se tornarão uma pesada efeméride na memória do povo português, 17 de junho e 15 de outubro. Ninguém ficou indiferente ao sofrimento que deixou cicatrizes no corpo e na alma não só das populações afetadas como também de quem absorveu as imagens do inferno em direto que lhes entravam pelo conforto do lar dentro. Não tardaria assim que se começassem a formar grupos espontâneos de gente disposta a arregaçar as mangas para pôr mãos ao trabalho.
O poder político não poderia colocar-se de parte. Desde os primeiros momentos, talvez porque tenha sentido que falhou na sua função de proteger os seus cidadãos, prontificou-se a fazer renascer das cinzas a zona centro do país. Não perdeu tempo a anunciar uma infinidade de apoios que seriam morfina para aligeirar as dores de quem vive numa área que parece ter sido marginalizada pelos poderes instalados na capital, independentemente da cor política. Houve um mar de campanhas de angariação de fundos, os jornais saudaram os milhões que iriam ajudar a pagar toneladas de cimento, areia e tijolo, que seriam a primeira pedra na reconstrução dos lares que o fogo consumiu. Várias entidades europeias estiveram presentes, fazendo contas aos fundos que iriam enviar. Acreditou-se em promessas.
Já passou meio ano, um período de tempo que soa a muito mais para aqueles que estão sem casa, à espera de uma resposta, de verbas ou do agilizar de um processo que tem um papel em falta que emperra a esperança de voltar a dormir debaixo do mesmo teto onde viveram uma vida inteira. Deparamo-nos hoje em dia com demasiados casos que pouco dignificam as nossas instituições, nomeadamente pela burocracia que o Estado acaba por impor, inundando os infortunados com impressos, certidões e outras complicações.
Contas feitas, ainda nem metade das casas foram reconstruídas, desenrascando-se os seus proprietários como podem. Outros, esperam pelos apoios que tardam em surgir. Muitos interrogar-se-ão por onde andará tanto dinheiro pois a eles não lhes chegou nada, como se houvesse portugueses de primeira e de segunda. Muitos já deixaram de contar com o Estado. Desistiram de esperar e tiveram de fazer das tripas coração para se fazerem à vida. A máquina burocrática do país que assiste a destruição de potenciais provas de responsabilidade nos incêndios (que poderão levar uma vez mais a culpa a morrer solteira) é, independentemente da realidade, vista por muitos como a mesma que arruína ou mantém em suspenso a vida de quem dela depende para sobreviver e recomeçar de novo. Quem está a falhar no seu dever de dar uma resposta eficaz às populações? As autarquias? O governo? A União Europeia? Ninguém sabe, mas sente-se uma quebra no contrato social de quem se sente abandonado já pela segunda vez. Quem se depara com este cenário, fica com a sensação de que não é só o país que se queima, são também os próprios pilares da nossa democracia.
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