Da Gula, da Misericórdia e da Morte
Desço até ao centro de Pangim, deixando-me levar pela fome, ou pela gula, e entro numa pastelaria cujo nome é, precisamente, “A Pastelaria”. Escolhemos sempre aquilo que nos toca, ou que nos diz respeito. Aqui, foram as duas coisas. Enquanto como um cup cake de manga e um “bolo de veludo vermelho”, empurrado com um sumo de kokam (um fruto parecido com o mangostão), ponho-me à conversa com o proprietário, perguntando-lhe o porquê do nome do estabelecimento. A resposta era previsível. Este indiano, de fé islâmica, nem é desta região, chegou aqui há uns anos e adquiriu este negócio, que era conhecido na cidade, optando por não lhe mudar o nome. Não será estranho este caso, uma vez que muitas das lojas desta cidade ostentam os nomes que aqui povoaram este território por dezenas ou mesmo centenas de anos. Nas entradas de alguns prédios, um pequeno letreiro indica que ali mora alguém que dá aulas de português, o que me faz acreditar que há interesse por estas bandas em falar a nossa língua. Passo pela barbearia de António Lobo, o espaço que se resume a uma casa colonial portuguesa onde um indiano corta o cabelo a alguém que parece um amigo de longa data. Acenam-me, sorridentemente, com aquela expressão de quem se presta a ser fotografado.
Mais à frente, passo pela Assistência de Goa, a denominada “Clínica dos pobres”, pertencente às Missionárias da Caridade, da obra da Madre Teresa de Calcutá. Aqui dão-se consultas gratuitas aos mais desfavorecidos, das 09:00 às 10:30 aos adultos, de segunda a sexta, enquanto as crianças têm lugar marcado às segundas, quartas e sextas das 10:30 ao meio dia. À porta, uma mulher da casta mais baixa da sociedade, os “dalit”, a quem chamam “intocáveis” por quase não terem direitos e estarem, na sua maioria, condenados desde a nascença pelo apelido que indica uma proveniência tida como sub-humana. São assim remetidos para as funções que os outros não querem, como se de sobras se tratassem. Num país onde a pobreza é omnipresente, esta e outras associações são uma gota de água num oceano, mas fazem toda a diferença para um mar de gente. Em Goa, a pobreza não é alarmante, sendo até um dos estados indianos em que as desigualdades não são as mais gritantes.
Procuro a igreja de Santa Inês, não pelo edifício em si, mas por albergar ao seu lado o principal cemitério português. Abro um enorme portão de ferro, muito perro, e entro numa autêntica selva onde campas e jazigos emergem de um manto verde como icebergs num oceano. Todo aquele espaço, na zona mais antiga desta cidade dos mortos, encontra-se envolto numa vegetação que aqui grassa muito abundantemente e que, como me disseram, apenas é desbastada a um de Novembro, dia dos finados. Ouve-se a eucaristia, que ecoa pelas traseiras da igreja enquanto me detenho a olhar para os inúmeros nomes portugueses cravados numa campa com uma face indiana. É aqui que se sente o que foi a miscigenação, o cruzamento de séculos de portugueses com asiáticos, a quem deram os genes e os nomes próprios e apelidos. Aqui jaz não só aqueles que aqui viveram como também aquilo que foi, outrora, um império.
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