José Avelino Gonçalves
No dia seguinte, por volta das nove da matina, os irmãos Montenegro, acompanhados do José Augusto do Rego, esperam o amigo redator, agora radicado no Alentejo, junto à ponte que fica a poucos metros de distância do portão da Quinta da Portela, propriedade de D. Luís de Carvalho Daun e Lorena, futuro Marquês de Pomares.
A estrada da Beira estava amanhadita até à Ponte de Mucela. A subida de S. Frutuoso, que segue por entre viçosos pinheiros, estafa as cavalgaduras e os viajantes. Vale a estalagem do Rodrigues, que regurgita de gente. Local de encontro de estudantes da Academia, que nos dias feriados ou de passagem para as povoações serranas, aí enchiam o bucho! O lombo de porco e o peixinho frito com picante eram muito elogiados. Tomam um café sofrível, calha a aguardente de medronho, de três assobios, que arrebita o corpo e os prepara para a viagem.
De Coimbra à Covilhã, indo pelo Açor, era uma jornada superior a dezasseis léguas! Dali até à Ponte Velha são duas horas bem contadas. Nesta povoação é situada a quinta de António José de Carvalho Montenegro, que exerce funções de delegado do procurador régio nas comarcas de Tábua e Arganil. Um apaixonado pelo violão, que o toca, diga-se, com primor. Dá música aos violadores da lei! No ano seguinte vai investigar João Brandão e outros co-réus, implicados no assassinato do padre Portugal.
A toca da Maria Preta, em Serpins, nesse dia andava numa fona, com a casa cheia de comensais. Tinha cliente especial! José Joaquim de Paula, que andava atarefado na construção da sua nova fábrica de papel, junto ao lugar do Boque. Calhava que o comboio por aí passasse! O padre Daniel era de opinião que o caminho de ferro deveria seguir da Lousã em direitura a Vilarinho, a freguesia rural mais importante do concelho. Sempre que visitava o colega prior de Vilarinho, perdia-se ali para os lados Água D`Alto! As suas águas férreas amaciavam os distúrbios gástricos e o moleiro Adalberto moía a melhor farinha de milho da região, que fazia umas papas de truz!
O jornalista elogia o trabalho de João Elisário Montenegro no Brasil. O seu jeitinho para a escrita. Debaixo do pseudónimo “Júlio D´Arouce” amanhava uns belos textos para o “Arquivo Pitoresco”.
Joaquim de Paula almoçava, rodeado de outros comensais, alguns deles almocreves, que seguiam em direção à Guarda, com passagem por Góis. Regateavam o preço, rachavam a diferença. A mesa, enorme, protegida por alva toalha, mostrava a bela cozinha da patroa. A gorda galinha, assada no forno com um bom naco de presunto e paio, cheirava que era um regalo! Os ovos cosidos e os bolinhos de bacalhau tentavam. As picheiras do tinto, surripiado às terras de Lamas, de cor vermelho escuro, cheio, complexo, com taninos muito redondos, caía que nem ginjas!
Padre Daniel pede desculpa, não resiste à tentação da carne. A gula era o seu pecado! Promete que vai pedir perdão na capelinha da Nossa Senhora da Candosa! O jornalista aproveita para elogiar muito o trabalho do amigo João Elisário no Brasil. O seu jeitinho para a escrita. Debaixo do pseudónimo “Júlio D´Arouce” amanhava uns belos textos para o “Arquivo Pitoresco”.
As cavalgaduras aguardavam ao sol, picadas pelo mosquedo, bufavam! Carregavam algumas resmas de papel da fábrica da Lousã e acertava-se o transporte de uma carrada da fábrica da Ponte Sótão, para S. Exas., os juízes das comarcas da Cova da Beira e da Guarda, botarem as suas decisões!
Os viajantes mantinham a barriga, já farta, encostada à mesa de refeiçoar. Tomavam o café no conchego e frescura da taberna. Simões apressa os companheiros, Góis ainda está a umas boas duas léguas! Padre Daniel benzeu-se com devoção, recolhe as contas do rosário ao bolso, abandonam a taberna da Maria Preta. Fora, o vento alevantara-se, bramava como num ermo serrano, a Feira dos Bois estava cheia de almocreves e viandantes que partiam.
Num salto chegam ao pequeno lugar da “Maria Mendes”. O rio Ceira seguia, agora, calmo, muito vazio. Pedaços de areia reluziam em seco e a água baixa arrastava-se com um marulho brando, toda enrugada do roçar dos seixos. Um guarda-rios, vistoso, muito colorido, desaparece no emaranhado dos salgueiros. Junto ao rio, um moleiro, muito atarefado, reconstruía as paredes do moinho.
Prosseguem viagem, trilham as veredas do futuro caminho de ferro, afrontam rijamente os caminhos da encosta. Seguem a pé, poupam as cavalgaduras! O futuro Comendador desanca fortemente nos políticos: – “Irra! Raio de país este, onde não há estradas, só moscas! O senhor redator bufava, transpirava abundantemente. Ultimamente engordara, o ventre saliente mostrava o seu vício pela boa comida beirã. Os manos Montenegro ajudam o criadito a colocá-lo na garupa do cavalo.
O pobre animal, já carregado com as bolsas do “necessaire”, abana a cauda, resmunga! O senhor prior acalma-o, dá-lhe umas pancadinhas nos traseiros. A tarde seguia ventosa, muito quente, o sol despejava os seus raios nas fragas quartzíticas da Nossa Senhora da Candosa. As águas do Ceira correm aqui, mais apertadas que leiva de pipa! Os nossos amigos abrem a boca de espanto, não resistem: – “Magnifique!” Uma obra de Deus!”, exclama o nosso prior, com uma lentidão de frade que se regala. A garganta do Cabril do Ceira recebe-os, engalanada por um magnífico espelho de água que reflete as paredes quartzíticas das encostas, como se tivessem sido cortadas a direito. Em alguns pontos atingem mais de uma centena de metros de altura! Frei Agostinho de Santa Maria chamou-lhe Portas da Candosa: – “É por esta “Porta”, em forma de garganta, que entra o alvor do Sol, pois que, face ao termo do concelho, se situa aproximadamente a Nascente. É também por esta “Porta” que entra o rio Ceira para, juntos, realizarem, nas planuras do concelho, o milagre da fertilização!”
Padre Daniel, sentado numa laje, que encosta suavemente às águas frescas do rio, sorvendo regaladamente uma pitada do rapé, conta-lhes a Lenda da Candosa. Que no tempo dos mouros, que também por aqui andaram, estes, pretendiam fazer uma barragem e assim inundarem as terras e as gentes da região. Mas, a Senhora da Candosa ia lá de noite e destruía o seu trabalho. Quando a mourama lá chegava, ainda o dia estava na casa de Deus, viam o seu trabalho desfeito e logo recomeçavam, injuriando muito a Senhora. A prova do crime estava à vista na gruta da Lapa! Pegadas do burro da Nossa Senhora da Candosa!
Na Garganta do Cabril, José Augusto do Rego, muito pensativo, protegido por um enorme chapéu de palha, atalha: – “Cá para mim, o caminho de ferro vai sepultar-se nos penhascos do Ceira! Daqui não passa!”
José Augusto do Rego, muito pensativo, protegido por um enorme chapéu de palha, levanta a sua polemicazinha: – “Cá para mim, o caminho de ferro vai sepultar-se nos penhascos do Ceira! Daqui não passa!” O rapaz, com vinte e cinco anos feitos, ainda a estudar, gostava do progresso, achava até necessário o progresso. Mas, agora, com os bolsos vazios, um país quase na bancarrota, quererem levar o caminho de ferro a todo o lado! O que se precisava eram boas estradas. Os outros desancam na sua ideia, chamam-lhe homem de pouca fé. A civilização está em marcha!
(Continua)
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