Prestes a publicar “A Última Devassa e Outras Estórias”, no próximo dia 7 de outubro, José Avelino Gonçalves assina o último capítulo de uma trilogia iniciada em 2020. Oportunidade para falar com o Juiz Desembargador no Tribunal da Relação de Coimbra que nas horas vagas veste a pele do escritor
Entrevista conduzida por Carlos Sêco
Com esta próxima obra, encerra-se uma trilogia. O que nos é revelado neste terceiro capítulo?
São três livros de uma assentada só. Todos bebidos na mesma escrita. A do escrivão e do magistrado que faziam a Justiça nestas Beiras do século XIX e princípios do século XX. São para aí, à vontadinha, 113 estórias recheadas de peripécias judiciais. Mais de 200 anos de informação histórica, virgem, com personagens reais, retiradas ao pasto devorador dos ácaros e da humidade.
Neste último volume, Vilarinho, terra antiquíssima que foi pisada pelos reais pés do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra, um lugar de tecedeiras que nunca largam a roca e o fuso, é citada trinta e três vezes e a nossa Lousã para aí outras tantas. “UMA VIAGEM POR TERRAS DO CEIRA E ALVA” leva-nos, naquele ano de 1865, à vila da Lousã, que se espartilhava em torno do largo da velha Matriz, dos Paços do Concelho e Tribunal, com quatro ou cinco ruas, e à descoberta do belíssimo vale do rio Ceira.
A canção, “Donde é você ò patrão? /Eu sou da Lousã/Onde há pera e maçã/Castanha longal/Cereja bical/E meninas bonitas/ Com o seu avental”, trauteia-se nas antiquíssimas terras do riquíssimo vale da Lousã, enquanto se devassa o palacete do bacharel Francisco Furtado de Mesquita Paiva Pinto, o antigo capitão das milícias da Lousã – ANTÓNIO FIGUEIREDO JÚNIOR, GUERRILHEIRO OU LADRÃO?
Das assentadas desta “Última Devassa” nascem estas estórias, simples como as personagens que lhes dão vida. Enredos e vivências camilianas com um ligeiro toque queirosiano, estórias muito ricas da nossa Justiça. A devassa das manas Tavares e o caso da “janela das duas irmãs”, vai ocupar o Juiz de Fora por longos anos. Os gordos proventos, deixados por Dona Joana Caetana da Cunha, esfumam-se nas goelas tenebrosas da litigância.
A serrana e fragosa aldeia, que não tem igreja nem cura e que se aconchega a meio da encosta, embarrigada pelas ribeiras que se precipitam para o rio Ceira, recebe bem os da Covilhã. Os do Franco de Cima trazem uma larga travessa de arroz-doce, que escapara à orgia devoradora das festas natalícias e uma quente e nutrida sopa de castanhas, para aconchegar o estômago lazarento dos serranos da Estrela.
A Josefa de Figueiredo, uma formosíssima moça, uma raparigaça de muito boas curvas, que tinha o hábito de apertar as saias nas pernas longas e bonitas, tem um enroscanço ilícito com o patrão, que que tinha manias aristocráticas. O pobre do Joaquim é lançado à roda na vila de Belmonte!
Sabiam os meus queridos amigos, que o padre Daniel Montenegro, quando visitava o colega prior de Vilarinho, perdia-se ali para os lados Água D`Alto? E que as suas águas férreas amaciavam os distúrbios gástricos e o moleiro Adalberto moía a melhor farinha de milho da região, que fazia umas papas de truz?
Este novo último volume está recheado de quarenta saborosas estórias, que nos transportam, de uma forma divertida, para o ambiente rural das nossas aldeias e vilas. Estórias como “OS SUÍNOS E A ANA BORRATTA”, “O BARBEIRO E A BANHOCA DO PADRE QUIM”, “AS FRANGAS DO REVERENDO PADRE PRESUNTO”, “O HOTEL REPUBLICA E A BELA AURORA” e “O ARTOLAS E O ATESTADO DE VIRGINDADE”, seguramente vão fazer troar lá por casa, umas fabulosas gargalhadas.
Olhando para trás, sentes que aquele sótão empoeirado do Tribunal da Covilhã estava à tua espera? Se não fosse o José Avelino Gonçalves, todas aquelas histórias nunca teriam sido contadas?
Bendito o dia em que, como Presidente do Tribunal da Comarca de Castelo Branco, entrei naquela já muito célebre porta, que embica para o sótão do Tribunal da Covilhã. Aí estavam, à minha espera, centenares de processos, já transitados em julgado, cujas partes e envolvidos há muito compareceram perante o Tribunal Divino. O meu sitio arqueológico, a minha Grande Devassa. Nem as cabeçadas dadas nas grossas traves de rijo castanho, que amparam o telhado da Casa da Justiça, nem o pó, nem os ácaros travaram o meu vicio. Um devassador da coisa antiga. Ao sótão e aos seus tesouros, com mais de duzentos anos, devo estes escritos. Estas fabulosas estórias da nossa Justiça, que ficam para memória futura!
A partir de agora, o escritor despe a farda do investigador?
Não. Preciso descobrir novos documentos, novos sítios arqueológicos. Preciso continuar este vicio de descobrir, investigar e escrever estórias do judicial. Continuar estes mergulhos no pó do processo, na mineração, na procura sôfrega das gentes, dos costumes, do conflito judicial. Doidices da juventude, de quem se perdia pela Arqueologia e pela História.
Que balanço fazes desta incursão pela escrita?
Como sabes, o autor só escreve metade do livro, da outra metade deve ocupar-se o leitor. Por isso, dou a palavra aos amigos desta causa, aos amantes destas estórias, que como eu, vão devorando cada estória que sai e que, demandam ansiosamente por este terceiro volume:
“Excelentes retratos sociais e políticos cuja leitura nos faz imediatamente entrar no ambiente do passado nesta nossa região. Nunca imaginei que um juiz se dedicasse tão competentemente, não só a tais investigações como conseguisse transmiti-las da forma retratista alcançada. Extraordinário; “Mais uma excelente história que vai montando o puzzle do séc. XIX covilhanense. Parabéns ao investigador que tal nos proporciona”;
“E assim se conclui mais uma excelente história! Nem falta o Acúrsio das Neves, famosa personalidade de Fajão. Algo que me agrada nestas estórias é a mesclagem com o rigor dos acontecimentos reais. Parabéns”; “Adoro estas pequenas histórias!!!Com uma descrição tão pormenorizada dos locais e das personagens, somos transportados para junto deles!!!”; “Ai meu Deus! Eu fico presa nestas leituras deliciosas e “pecaminosas”. Já não passo sem elas!!!”; “Sempre a primar pela excelência”. “Adoro ler as tuas histórias, a tua escrita”; “Que delícia!”; “Já estou com pulgas nos olhos”; “As famosas lutas do “João Brandão” e as guerrilhas Miguelistas, entram novamente no meu imaginário, e relembro as estórias da minha Querida Avó. São fantásticos estes relatos que nos transportam para outros tempos! Bem-haja pela partilha”; “Estou ansiosa para ler!!!”; “Que bom “aperitivo” para o 3°. Volume da Devassa. Parabéns Caro Dr. José Avelino”.
São estas saborosas notas de rodapé, algumas que levei ao segundo volume, que me obrigam a continuar na escrita destas estórias que também são a nossa História. Uma decisão “sem apelo nem agravo”!
Concluída esta trilogia, que planos literários estão em cima da mesa?
Para desenjoar, faço uma pausa nestas andanças da “Grande Devassa e Outras Estórias”. Mas, lá voltarei! O espólio, já trabalhado, dá para encher outras tantas páginas da “Grande Devassa”.
Agora, a viagem é outra. Um novo projeto literário. Um romance, que também será histórico. Cheio de lugares e personagens das nossas Beiras. Aproveitamos muita da investigação já feita, algumas das personagens da “Grande Devassa”, que vão dar vida ao romance. Situado nos anos de 1816 a 1840, deverá chamar-se “A TECER AS BEIRAS”.
Estamos já envolvidos na trama, a tecer a sua história o seu ambiente. Personagens reais, buscadas nos poeirentos processos do sótão. Figuras desconhecidas na Literatura e na História. O tenente coronel Fernando da Costa e Almeida, nasce em Medelim, terras de Idanha. Até aos quinze anos foi criado por uma velha e muito católica tia. Dona Catarina Eugénio Joaquim Ferreira de Carvalho casara com marido rico, que apanha “bordoada grossa” na desgraçada Guerra das Laranjas. Fernando da Costa, voluntário na guerra do Rio da Prata, não estava disposto a aceitar para genro, o primeiro ou qualquer candidato desconhecido.
O pretendente, Luís Caldeira Montaes, nascido no formoso Vale de Prazeres, é um liberal moderado, conciliador, que quer manter os antigos privilégios. Pouco crente na constituição, é pronunciado em devassa e preso pelo crime de Amotinador e Perturbador do sossego público. Tirou Direito em Coimbra e convivia muito com José Lopes Serra, filho de outro, natural do Lugar de Vale de Maceira, termo da Lousã e com António de Mello Salazar Sarmento e Alarcão. A sua fama de fidalgote rico tornava-o apetecido nas boas famílias. Bem-apessoado, com jeito para a poesia e para as vendedeiras do Mondego, aceitou com orgulho a alcunha do “Poeta das Beiras”.
O doce aroma dos laranjais embriaga, o amor entra-lhe peito adentro. Luís Montaes apaixona-se perdidamente por uma donzela, muito loura, suculenta de carnes, com um olhar muito guloso. Vira–a na velha ponte que atravessa o Mondego. O marido, um fidalgote das Beiras já avelhado, que enriquecera com o contrabando do sabão espanhol, controla-lhe os impulsos, modera-lhe a carícia prometedora dos seus olhos pestanudos. O “Poeta das Beiras” dedica-lhe uns versetos. Almeida Garrett faz-lhe a revisão. Dona Maria d´Elvas Leitão Mascarenhas não lhe fica indiferente….
Foi nas páginas do Trevim, na qualidade de correspondente de Vilarinho, que nasceu o gosto da escrita e de contar histórias?
Sempre tive uma paixão pela leitura. No tempo em que os exames tombavam nas velhas e bolorentas salas da Faculdade de Direito, levava sempre, bem aconchegado ao braço direito, um afinador de memória. Não o “Direito Romano” do Santo Cruz, não as sebentas de “Direito Comercial”, muito menos o “Manual de Ciência Política e Direito Constitucional” do Marcelo. Um belo e colorido livro da dupla Astérix e Obélix. A sua leitura relaxava. E não é que resultou!
A correspondência, nos finais dos anos oitenta, com as páginas do Trevim esmerou esse prazer pela escrita, afinou o contador de estórias. Por isso, esta “Última Devassa” termina com duas preciosas estórias: “EU E O TREVIM – RECORDAÇÕES DE UM CORRESPONDENTE/ O JAZZ DE VILARINHO e O FERREIRO DA CAL. Resgatadas ao tempo, em que o querido e saudoso amigo “Zé da Avó”, nos entrega a pasta de correspondente do jornal Trevim na freguesia de Vilarinho. São as “Outras Estórias”, que junto à “Grande Devassa”. Uma forma de eternizar gentes de Vilarinho e da Lousã.
Que virtudes e defeitos foi o escritor José Avelino Gonçalves buscar ao magistrado com o mesmo nome?
A escrita do juiz é muito densa, muito técnica, muito refinada. Não serve para contar estórias. A “Grande Devassa”, se fosse lavrada com tal palavreado, não tinha leitores, ninguém as lia! Mas o mester de magistrado permite, por outro lado, devassar essa linguagem formal, perceber o processo antigo, levá-lo com outra roupagem ao leitor, condensá-lo numa estória. Camilo Castelo Branco e Eça de Queiroz, com a sua fabulosa escrita, permitem reescrever o conflito judicial, expor nas páginas da “Devassa” o acontecimento histórico. Com uma linguagem natural, fora da aridez e rigidez processual da Justiça. Por isso, um vínculo casadouro entre o desembargador e o escritor
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