Foi um acontecimento fantástico, cem por cento popular, o da chegada do comboio a Serpins. Calhou a um domingo, 10 de Agosto de 1930, dia da semana em que as pessoas costumam vestir o fado domingueiro para ir assistir à Santa Missa e depois dar uns dedos de prosa pelas cercanias ou, então, ir comer um farnel à borda do rio, dar uns mergulhos para apanhar um bocado de fresco, que o calor no Verão é opressivo.
Desta feita, porém, as pessoas alindaram-se por demais e à hora da chegada do comboio, cerca das 14:30 horas, na zona envolvente da estação, “o povo da freguesia de Serpins ali está todo, oferecendo-nos um conjunto característico. Saias vermelhas – ´cache-nêz` berrantes – espalham-se e juntam-se com as ´toilettes` das muitas senhoras que quiseram ir ali também, oferecendo-nos assim um aspecto bizarro e singular”, escreve o repórter do Diário de Coimbra.
O correspondente do jornal Alma Nova, o único que então se publicava na Lousã, salienta que “este dia 10 de Agosto jamais poderá esquecer ao povo desta terra. Serpins nunca viu igual, talvez fossem mais de 4 mil pessoas que se juntaram no largo da estação e que se espalharam pelos pinhaes e olivaes à procura de alguma apetitosa sombra, porque o calor era sufocante. Toda esta multidão estava anciosa pela chegada do comboio inaugural”.
O bissemanário independente A Comarca de Arganil dedica ao assunto toda a primeira página da edição do dia 12, com uma fotografia da nova estação de Serpins e com a manchete “A linha férrea de Coimbra a Arganil – Inauguração do troço Lousã-Serpins”, porque as gentes da região estavam então convencidas de que o projecto da linha ir até Arganil e, depois, quem sabe!, ligar à linha da Beira Alta, em Santa Comba Dão, era promessa para ser cumprida. Escreve este jornal que “muito antes da hora marcada, já na estação de Serpins era grande a multidão que ali se aglomerava. Desde muito cedo que para lá começaram a encaminhar-se, pelas estradas e caminhos, ranchos e ranchos de pessoas.”
Foguetes, Hino Nacional
e um “entusiasmo indescritível”
Quando o comboio chegou foi o delírio…. Estralejaram no ar girândolas de foguetes de vários lados e a Filarmónica Varzeense, de Vila Nova do Ceira, tocou o Hino Nacional e abrilhantou a continuação da festa. “O entusiasmo é indescritível. É grande a alegria que se nota em toda a gente e dos olhos de muitos brotam lágrimas de comoção”, lê-se ainda no mesmo jornal da Arganil.
O correspondente do Alma Nova remata escrevendo que “depois de retirar o primeiro comboio, eram 15 horas, foi toda essa massa de povo atacar com violência os seus pacatos farnéis à sombra dos arvoredos que circundam a estação, conservando-se todos até depois da chegada do último comboio que chegou às 19:35, que vinha também cheio de passageiros de todas as partes, redobrou o entusiasmo soltando-se novos vivas”.
O comboio inaugural era composto de uma locomotiva, uma carruagem-salão (para as altas individualidades), furgão e sete carruagens – uma de 1ª classe, duas de 2ª, duas mistas (1ª, 2ª, 3ª classes) e duas de 3ª – as quais vinham cheias de passageiros, entrados nas estações do percurso, entre Coimbra e Serpins, e muitos tendo vindo de Lisboa e de outros pontos do país.
Entre as individualidades presentes contavam-se representantes da Companhia Portuguesa dos Caminhos de Ferro, da Companhia do Mondego, de várias associações regionais e também autarcas dos concelhos de Arganil, Lousã, Miranda do Corvo e Coimbra.
Houve uma comissão promotora dos festejos presidida por Ramiro S. Cortez, de Serpins. Para chefe da nova estação foi destacado Alfredo Alonso, factor da estação de Coimbra B.
Na construção deste troço de via férrea, cerca de 6 quilómetros, foi gasta toda a verba que estava orçamentada para levar o comboio até Arganil, vila onde, desde o princípio, estava previsto a linha ter o seu término. O facto ficou a dever-se à Companhia Portuguesa dos Caminhos de Ferro que, contratada para a execução das obras, alterou o traçado primitivo, tendo encarecido enormemente os custos da empreitada. A importância em causa atingia o montante de dez milhões de escudos e fora aprovada pelo Governo em 8 de Junho de 1923.
Implantação da estação até afastou o Diabo…
É interessante referir que o sítio onde foi construída a estação de Serpins – lê-se na reportagem do Alma Nova – era “um sítio triste e sombrio, onde se dizia que o Diabo tinha ali assentado arraiais com a sua ronda de fantasmas, para meter medo a quem por lá passasse, o que muita gente supersticiosa evitava”. Depois de feitas as obras da linha e construído o edifício da estação – escreve ainda o jornal – “esse sítio tão feio é hoje um dos pontos mais alegres e pitorescos dessa freguesia, que até o pobre do Diabo teve de lá retirar com as suas aparições fantásticas”.
Depois do comboio ter chegado a Serpins, as populações de Góis e de Arganil continuaram a movimentar-se para que o caminho de ferro chegasse ao termo previsto, em Arganil, mas todos os seus esforços foram em vão. Nessa movimentação teve papel de destaque a Casa da Comarca de Arganil, em Lisboa.
A conjuntura económica e a política da época, adversa a novas realizações ferroviárias e os antecedentes de pequenas divergências entre as companhias que exploravam a zona puseram fim aos anseios das populações. No entanto, o traçado da linha ficou todo marcado até Arganil, inclusivamente iniciado o túnel difícil de rasgar na rocha fronteira à Senhora da Candosa, no Cabril do rio Ceira.
N.B. – Nas transcrições dos jornais deu-se preferência à escrita da época.
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