Manuel Rocha foi um dos muitos amigos de Louzã Henriques, que morreu em 29 de julho de 2019, com 85 anos. Na altura, em 5 de agosto, o violinista da Brigada Victor Jara publicou no Diário As Beiras um texto sobre o antifascista da Serra da Lousã que um dia escreveu que quem pecar contra a beleza “está muito longe de ser humano”. Um ano depois, revisitamos a bela prosa de Manuel Rocha, agora com título da responsabilidade do Trevim.
Os humanos não nascem sábios. Nascem apenas espertos por igual para gritar por alimento, a primeira precisão da sobrevivência dos seres. Uns hão de dar conta mais tarde das muitas luzes do mundo, estimulando necessidades mais complexas do que as da barriga cheia, mas para outros muitos não mobilizarão a vista para tais atenções. Só repara nos movimentos das vidas quem quer. Um homem e uma mulher podem perfeitamente atravessar a existência usando a inteligência para, apenas, ir andando (como se costuma dizer) e, assim, viverem consolados o tempo de uma vida inteira.
Mas é pena. Porque poderá calhar nunca saberem das alegrias de um fole de concertina respirando as amarguras de um fado corrido; nem imaginar as histórias escondidas sob o teclado de uma Remington; e menos ainda compreender que a liberdade de uma mulher pode morar também no sobe e desce das agulhas de uma Singer.
Louzã Henriques reparava em tudo o que fosse peça da engrenagem humana desta aventura conhecida por Civilização. E estudava-lhe o sentido, coligia-lhe testemunhos e objetos, envolvia-se no processo. Envolvia-se tanto no processo que usou a própria liberdade nos dias em que a governação de Portugal prendia, deportava, torturava e matava aqueles que à liberdade se davam. Uma vez, numa comemoração do 25 de Abril ali em frente à PIDE, ouvi-lhe o mais belo discurso antifascista da minha vida toda. Falou da prisão, da tortura às mãos de “pobres diabos” que eram, disse, servos-apenas de uma desordem política que os bestializava e destituía da própria – e humanamente essencial – condição da fraternidade. Condição que percebiam naqueles que espancavam, jovens estudantes a quem invejavam a sorte e ali julgavam fazer pagar a sua própria má sorte de carrascos.
Por isso fez tanto sentido aquela bandeira vermelha cobrindo a urna em que, contra a nossa vontade, se abrigou. Como quem cuida que o seu último traje seja o da luta centenária em busca da solução para uma tão grande desordem na repartição dos bens. Como quem decide que a última palavra por si dita seja a de lembrar as ferramentas com que, pelo trabalho, os humanos acrescentaram às leis da Natureza as mais recentes leis da História.
Há de ter sido no ofício de médico psiquiatra que terá aguçado o engenho de esticar o tempo, preenchendo-o de conversa, de música, daquela arte de falar sobre todas as coisas, fazendo crescer nos ouvintes a vontade de ficar para mais. Os humanos não nascem sábios, ficou dito logo no início. Louzã Henriques fez-se sábio e como tal é reconhecido porque soube puxar a si as humanidades daqueles com quem se cruzou: as mulheres que o criaram, os serras e os aires a quem roubou o jeito das modas de terreiro, a Etelvina, os camaradas com quem partilhou sortes e prisões (homens de quem falava com tanto carinho), os companheiros dos encontros à quinta-feira à porta da Lápis de Memórias, os de casa, os velhos companheiros do Palácio da Loucura, os bardos da reinvenção dos cantos de Coimbra, os dos tangeres das guitarras entre gefaques e brigadas que junto dele buscavam conselho e contexto, os vitórias, os martinhos, os avelãs que o acompanharam nas moradas todas e não vão habituar-se a que não esteja.
Ricardo Reis deixou dito que “sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo”. Mas o Louzã Henriques quis mais – quis fazer parte do espetáculo do mundo e fez-se ator a limar-lhe asperezas, a inventar-lhe belezas. E um dia, jovem ainda, em pleno espetáculo do mundo, fez-se cavaleiro andante e escreveu: “aquele que pecar contra a beleza está muito longe de ser humano”. Fazes-nos falta, Louzã.
Manuel Rocha
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