
Num universo totalmente dominado pela guerra, terror e opressão política / religiosa / social é possível falar de humor e, acima de tudo, falar de humores que não abordem aqueles temas sufocantes e castradores? Esse é o mundo vivido pelo povo afegão, um país vítima da sua situação geopolítica. Segundo o cartoonista Shahid Atiqullah, a «posição geográfica do Afeganistão determinou em grande parte o perfil demográfico do país e a sua história. É uma amálgama de quatro culturas: do Islão, Hindu, Cristianismo Ortodoxo e Confucionismo».
Além deste puzzle social, étnico e cultural, com dificuldades de comunicação entre os vários dialectos e as duas línguas oficiais, esta zona transformou-se num campo de batalha de múltiplos interesses políticos e económicos internacionais. Com o fim da monarquia, em 1973, a invasão soviética (1979/89), seguida de uma década de terror dos Mujahidin / Talibans, da invasão americana (2001 / 12), de uma inesgotável desconfiança dos diferentes chefes tribais, da corrupção e de guerrilhas de interesses externos… este país é ainda mais perigoso para os irreverentes ou humoristas. Não obstante, eles persistem em campo.
«O humor no Afeganistão – continua Shahid Atiq – tem uma longa história. Era uma vez a paz e a tranquilidade reinantes e as publicações cheias de humor. Sim, havia uma tradição na literatura, na poesia e no teatro… com nomes importantes como Jalal Noranni, Aynna, Manan Melgere, Mohammad Akram Osnab, Azem Jasor, Akber Roshan, Pertaw Nadere, Hanifi…
Quanto ao desenho de humor de imprensa, ao contrário do que possam pensar, não foi uma importação ocidental, antes desenvolvido no meio ambiente e de acordo com as tradições do Afeganistão. O humor teve um lugar especial no nosso país e, inclusive, nos anos quarenta o cartoonista Navin chegou a assumir a pasta do Ministério da Informação e Cultura. Infelizmente, a guerra e a insegurança tiveram um efeito negativo em todas as publicações e no humor das pessoas.»
«Os quarenta anos de guerra imposta tiveram efeitos muito negativos, principalmente no aumento do analfabetismo e da iliteracia humorística. Esse analfabetismo e essa desconfiança entre as tribos cria altos níveis de sensibilidade e intolerância. Vários jornalistas têm sido assassinados, apenas por criticarem os governantes ou posições contrárias aos grupos de poder. Partidos radicais e senhores da guerra foram enfraquecendo o universo da comicidade afegã e a vida dos meios de comunicação. Infelizmente, hoje não há espaço para o desenho de humor na imprensa e se criticados, bloqueiam mesmo as redes sociais (a minha página do Facebook foi bloqueada e os meus e-mails invadidos por mais de uma vez). O meu trabalho dentro do Afeganistão (como de todos os outros cartoonistas políticos) não é possível, e como centenas de afegãos, tive de emigrar.»
«O humor, para fazer as pessoas rir, é muito importante porque as condições da guerra tornam a vida mais difícil e as pessoas precisam de sorrir. Deve haver pessoas que façam rir os outros, mas o humor no Afeganistão tem as suas limitações por causa dos diferentes costumes que não conseguem digerir, facilmente, o humor tradicional e religioso.
Os temas internacionais são mais fáceis do que os regionais (mais étnicos) porque as pessoas estão insensíveis à comicidade interventiva; a guerra tornou-os inconscientes e fechados ao diálogo humorístico. Mais do que os problemas religiosos, como eventualmente se poderá crer, os de natureza étnica são mais limitativos no sentido em que não os deveremos explorar.»
Se uns partem, outros mais resilientes subsistem no universo possível, como o teatro. Nessa frente podemos destacar dois exemplos: Mubariz Bidar e Karim Asi.
O humor teatral é eficaz como elemento pedagógico, principalmente numa sociedade com um baixo índice de alfabetização (apenas 64% dos afegãos sabem ler) e num país dividido entre várias tradições e costumes, conflitos que são um dos maiores obstáculos para uma paz duradoura. «O teatro tem um grande papel na unificação das pessoas no país». – refere Mohammad Azim Hussain Zadah, professor de teatro da Universidade de Cabul – «É como um guia para as pessoas».
A comédia no Afeganistão prosperou de 1800 até 1973. Com a invasão soviética em 1979, os actores começaram a sair do país e a comédia entrou em declínio desaparecendo com os Talibans. Hoje, o comediante Mubariz Bidar, director do Teatro de Khost, voltou a montar a sua companhia e não desiste de fazer comédias, um pouco por todo o país, de uma forma didáctica. Ele comenta as dificuldades que tem ao chegar a uma província diferente da sua: «- Este é um Pashtun, ele está contra mim. Eu sou um Tadjique, estou contra ele…. O teatro procura explicar às pessoas, através do humor, que somos todos irmãos e podemos trabalhar juntos».
O próprio governo tem procurado usar os actores comediantes para sensibilizar as populações, tanto para votarem, como para aceitarem certas reformas e retomarem certos comportamentos mais democráticos. Contudo, apesar de usar o humor para seu benefício, não deixa de ser intolerante com as irreverências mais críticas.
Karim Asir, o palhaço afegão que se traveste de «Charlie Chaplin» não desiste de levar o humor para a rua, apesar das ameaças de morte por parte do Daesh. Vestido como Charlie Chaplin, actua diariamente nas ruas de Cabul. «É muito simples, quero dar aos afegãos uma razão para sorrir. Há quem diga: “Não temos água, não temos onde viver e estás a tentar tornar as coisas engraçadas”. Eu digo: “Sim, temos esses problemas, mas também precisamos de ser felizes”.»
Osvaldo Macedo de Sousa
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