O compartimento do comboio que me leva para Mary ficou composto com uma última leva de passageiros que o preencheram com as suas bagagens e barulho da azáfama habitual.
À minha frente sentou-se uma jovem que teria uns vinte e poucos anos. De rosto trigueiro, ainda borbulhento, com olhos amendoados e de íris a primar pelo escuro numa face pentagonal, chamou-me à atenção pelo livro que folheava, “Hapiness Now”. Perguntei a mim próprio que razões a empurravam para aquela escolha e não demorei muito a dar o pontapé de partida para uma longa conversa ao longo de algumas centenas de quilómetros. Bahar era uma estudante de Língua e Literatura Inglesa na universidade da capital que se dirigia para a sua terra natal, Turkmenabat, entusiasmada com o fato de poder praticar o idioma que aprende com um estrangeiro.
– Onde fica Portugal? – perguntou-me com genuína humildade, pelo que peguei no telemóvel com uma aplicação de mapas para lhe indicar a localização de um pequeno retângulo na ponta da Europa, a resvalar para as águas do Atlântico.
– Adorava viajar pela Europa. Ah! Paris, Londres, Roma… Tanta História, tanta Literatura. Mas é difícil sair daqui. Já tentei, mas negaram-me o visto para poder ir estudar para Inglaterra – rematou com ar desiludido.
– A Europa é bela, e não deves perder a esperança de a visitares. Ainda tens uma longa vida pela frente – respondi-lhe, para contrabalançar um desânimo que já ameaçava consumir alguém ainda tão jovem.
– Fala-me do teu país – perguntou-me, curiosa.
Veio-me à cabeça Fernando Pessoa, quando escreveu que “a minha pátria é a língua portuguesa”, e decidi pegar nessa bússola para orientar uma viagem literária por Portugal, e assim lhe apresentar a alma do meu povo. O itinerário começava pelo mundo caleidoscópico dos heterónimos Pessoanos. Não deixou de ser irónico falar do Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro tendo a imensidão do deserto turquemeno como pano de fundo. Após essa primeira caminhada, mergulhei na profundidade sem fundo de Bernardo Soares no seu Livro do Desassossego. E como quem muda de disco, saltei depois para Saramago, falando sobre a sua vida, do Nobel que ganhou e do seu discurso em Estocolmo, centrando-me finalmente no Ensaio sobre a Cegueira, obra que me pareceu pertinente para alguém que vive nesse país.
Havia que materializar este roteiro. Pego no meu lápis e peço-lhe se poderia anotar no seu livro as principais obras que lhe tinha falado. Enquanto comíamos pão e tâmaras secas, fui dando corpo às referências da fina flor da literatura portuguesa, até que me pergunta se eu conhecia Elif Shafak. Ao responder-lhe negativamente, recomendou-me essa escritora proveniente da Turquia, a nação que é a grande referência étnica e linguística do seu país. E recomendou-me também a obra de alguém que me era estranho, Ármin Vámbéry, viajante húngaro do século XIX que foi um pioneiro ocidental na exploração não só do Médio Oriente como também da Ásia Central, a sua terra mãe. Deu-me bem para a troca.
O comboio chega finalmente a Mary. Depois de combinado um chá na sua cidade, por onde passaria dias mais tarde, saio da estação de comboio a degustar Saint-Exupéry: “Aqueles que passam por nós não vão sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.”
José Luís Santos
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