Entro pelo jardim da casa e já o pachorrento Faísca, nome paradoxal para este gato, me recebe com a languidez que lhe é característica. Baixo-me para o afagar e, quando levanto os olhos, lá está a nossa pequena-grande mulher, com a graciosidade de uma criança, mas que, ao falar, se percebe bem que é uma pessoa determinada, adulta, estruturada.
Nasceu em Coimbra, é certo, mas talvez devido ao seu gosto pela antropologia, cedo quis perceber como eram outros mundos, outras gente, outras culturas.
Afinal, a sua cidade de infância, de adolescência e de início de mulher adulta não lhe chegava. Foi partindo e foi voltando. Alguns países fizeram-na avançar por diferentes, mas complementares caminhos, como a Índia, Cabo Verde, Brasil…
Estudou, experimentou, conviveu, vivenciou, aprendeu, quis, não quis…
Sua avó materna, Gabriela, era da zona de Miranda do Corvo. Do leque das suas mulheres, refiro esta porque, não a tendo conhecido, lamento agora que tal não tivesse acontecido. Esta senhora, pessoa de energia bastante para gerir mercearia e café, onde os homens se reuniam para beber o seu copito, foi a primeira pessoa da aldeia, Tábuas, a ter televisão, dando a possibilidade, a quem queria, de se juntar por perto e assistir à magia que saía daquela caixinha de surpresas, a preto e branco.
Muito mais tarde, já em Foz de Arouce, lugar de onde vos escrevo e que os pais da Manuela escolheram para morar, esta maravilhosa senhora partiu com a invulgar idade de 107 anos.
Mas voltando à sua neta, a mulher que não sei se veio de longe, se de perto, tal a abrangência de vivências em vários países, mas também a sua vontade de enraizamento num lugar acolhedor, na sua casinha de madeira, com o seu jardim, a sua horta, o seu pequeno pomar, bem como com os seus animais de estimação, onde duas cabrinhas marcam encantadora presença, esta pessoa diz-me, para grande surpresa minha, que até já Coimbra a não atrai particularmente. É a cidade, tipo de habitat de que se vai afastando para ser, em pleno, noutra realidade.
Começou a sentir-se cada vez melhor em Foz de Arouce e, passados dois ou três dias de visitas aos pais, invariavelmente, não tinha vontade de ir embora, pois esta terra era conforto, era chão sólido.
Então, há poucos anos, encontrou um terreno para enraizar o sonho de ter um lar onde pudesse viver muitos momentos de felicidade.
Na Índia estudou tudo o que foi necessário para poder pôr em prática a massagem Ayurvédica, realidade que continua a preencher algumas horas das suas semanas, cumprindo tão bem esse papel ao ponto de ser eu a dizer-vos: experimentai e depois dizei-me alguma coisa, está bem? Também fez formação em Ioga e em Reiki.
Acredita em pedagogias alternativas à Escola Pública, tendo estudado o Método Montessori, concretizando em Londres a parte prática.
Cada vez mais vive a sua individualidade como um processo que não é solitário, mas necessário. Uma longa jornada que não pode ser de outra maneira. Trilho que está a descobrir e que serve o seu propósito. Nesse trilho parece que irá entrar o canto, como manifestação de autoexpressão vocal, uma vez que a sua expressão manual tem sido muito praticada no artesanato que produz em trapilho e lã feltrada, não esquecendo as mãos que tem metido na terra e que, nestes últimos anos, têm dado à luz horta, jardim e pomar, para encantamento de olhos e paladar.
Entretanto, aproximam-se de nós, Estrelinha e Lili, as cabrinhas deste pequeno mundo verde. Os animais são seres muito evoluídos, refere, mas não falam a nossa língua, embora eu aprenda muito com eles.
O feminino tem muito a ver com a minha jornada, remata.
Talvez por isso, e para terminar esta longa crónica, eu tenha querido deixar para o fim a sua formação em Teatro, pela Escola Superior de Educação de Coimbra, porque consigo imaginar esta mulher a representar, sozinha, no seu palco de natureza, sendo que, ao cair da noite, voará pelos céus com a sua cabra Estrelinha. E isto é mesmo só um exemplo…
Maria Laranjeira
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