Avançar para o conteúdo principal

Pela Rota da Seda – Ashgabat, uma “fake city”

José Luís Santos

Aguardo por um transporte que teima em não surgir no coração da cordilheira montanhosa Kopet Dag, que ao longo de 650 quilómetros marca uma divisão centenária com o outrora império russo, que chegou a estes arrabaldes após a conquista do canato de Kokand e do Emirado de Bucara em 1868. Aqui, a fronteira é mais do que um arame farpado entre dois Estados diferentes. Estou a cruzar a linha que separa dois impérios com etnias, religiões e memórias históricas muito distintas. E deixo também os caracteres árabes para abraçar o alfabeto cirílico trazido pelos soldados do czar Alexandre II.

Entro para um autocarro onde reina a boa disposição nos passageiros. Alguém que arranha o inglês assume-se como intérprete do grupo e lança-se nas perguntas do costume. A entrada de Ashgabat é monumental. Pelo vidro do táxi por que paguei 10 dólares para me trazer para o coração da capital, centro-me na arquitetura, tão espalhafatosa, de uma cidade que detém, já por si, o record da maior aglomeração de edifícios de mármore do mundo. Prova disso, é a mirabolante coleção de construções que merecem uma espreitadela no Google imagens, como a maior roda gigante em mármore do planeta (que alberga no seu interior cinemas, pista de bowling, restaurantes e um planetário), o maior edifício em forma de estrela ou, também, outro em forma de uma ave (o aeroporto). O Monumento à Neutralidade assemelha-se a um foguetão, mas o Palácio dos Casamentos leva a taça pela exuberância da sua forma. Ashgabat é uma bizarra miscelânea de Las Vegas com Pyongyang. Gurbanguly Berdimuhamedow aspira a ser o ditador “special one” da Ásia Central, pelo que tem uma fixação doentiamente vincada pelos records do Guiness. Não é pelo Índice de Desenvolvimento Humano que pretende dignificar o seu país, mas sim pela quantidade de feitos nesse livro mundialmente conhecido.

Longas avenidas de quatro vias em cada faixa de rodagem rasgam uma paisagem de prédios de mármore que se prolongam para lá do meu horizonte. Tudo é novo, magnânimo e destila vaidade de novo-riquismo. D. João V aplaudiria de pé este “grande irmão” asiático. Mas com o passar do tempo vou sendo tomado pela desconfiança em relação a todo este show off que me rodeia. Os prédios abundam, mas vida é coisa que não se vislumbra, algo que é notório à noite, quando as suas luzes supostamente deveriam estar acesas como sinal de presença humana. Ninguém, ou quase ninguém os habita, concluí.

As estradas são linhas desérticas de asfalto por onde passam, pontualmente, os velhos autocarros públicos e alguns veículos ligeiros de cores claras. Tudo não passa de um amontoado de infraestruturas que, na realidade, estão muito fora do alcance, ou usufruto da população. Esta cidade idílica sabe-me a propaganda para estrangeiro ver, pois quem aqui vive sabe muito bem o que a casa gasta. A magnificência é insuflável, como se fosse uma refinada amostra de produto para exportação.

A realidade confunde-se com ficção neste faraónico número de ilusionismo. Tudo isto parece que existe, tudo isto é triste, tudo isto é falso.

Tags: 1463 | Crónica
Autor: Jornal Trevim

0 Comentários

    Deixe um comentário

    O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Meteorologia

Artigos relacionados

Trevim: Leia também Ruínas com Memórias – O lagar do Soito Opinião
31 Out 2024 12:01 AM

A encosta que trepa aos cocurutos da serra é rica, muito rica. O pinheiral alapa-se na boa terra da serra baldia, contorna pedaços de cultivo arrancados às entranhas das valeiras, cavados pelas águas frias e turbulentas das ribeiras. O casario...

Ler artigo
Trevim: Leia também Ainda a propósito de Camões… Opinião
27 Jun 2024 09:01 AM

  [caption id="attachment_19244" align="alignnone" width="256"] Filomena Martins[/caption]   Camões! Obra eterna, vida transcendente, mostrando o homem perante o infortúnio, sedento de amor, de sensibilidade subtil, criatividade divina, joguete da pouca sorte, ávido de reconhecimento e justiça! Português intemporal, nome grande...

Ler artigo
Trevim: Leia também A República e os figos do Santo Amaro da Rogela Crónica
28 Dez 2023 10:06 AM

  Aquela hora, enquanto o padre António Lopes Cortez Fróis dormitava, S. Pedro das Moitas era devassado. Arrolavam-se todos bens da Igreja de Vilarinho…. até os cueirinhos do Menino levaram! A canícula daquele mês de Agosto de 1911 esturrava as...

Ler artigo
Trevim: Leia também Uma viagem por terras do Ceira e Alva  – 2.ª parte Crónica
12 Jan 2023 12:01 AM

José Avelino Gonçalves No dia seguinte, por volta das nove da matina, os irmãos Montenegro, acompanhados do José Augusto do Rego, esperam o amigo redator, agora radicado no Alentejo, junto à ponte que fica a poucos metros de distância do...

Ler artigo
Trevim: Leia também Uma viagem por terras do Ceira e Alva – 1.ª parte Crónica
15 Dez 2022 03:22 PM

José Avelino Gonçalves Agosto dardejava nas ruas empoeiradas da Lousã. Ao fundo da Rua do Palácio uma carvoeira, pequena, atarracada, alombava com uma saca de carvão. Dois cães muito escanzelados, de goela seca e língua pendurada, protegiam-se nas sombras frescas...

Ler artigo
Trevim: Leia também Parabéns, Brasil! Crónica
25 Ago 2022 02:10 PM

Casimiro Simões No dia 7 de setembro, o Brasil comemora o bicentenário da sua independência. Estamos a falar de uma potência emergente a nível global, com mais de 200 milhões de pessoas que falam português. Foi para o país irmão...

Ler artigo
Definições de Cookies

A TREVIM pode utilizar cookies para memorizar os seus dados de início de sessão, recolher estatísticas para otimizar a funcionalidade do site e para realizar ações de marketing com base nos seus interesses.

Estes cookies são essenciais para fornecer serviços disponíveis no nosso site e permitir que possa usar determinados recursos no nosso site.
Estes cookies são usados ​​para fornecer uma experiência mais personalizada no nosso site e para lembrar as escolhas que faz ao usar o nosso site.
Estes cookies são usados ​​para coletar informações para analisar o tráfego no nosso site e entender como é que os visitantes estão a usar o nosso site.

Cookies estritamente necessários Estes cookies são essenciais para fornecer serviços disponíveis no nosso site e permitir que possa usar determinados recursos no nosso site. Sem estes cookies, não podemos fornecer certos serviços no nosso site.

Cookies de funcionalidade Estes cookies são usados ​​para fornecer uma experiência mais personalizada no nosso site e para lembrar as escolhas que faz ao usar o nosso site. Por exemplo, podemos usar cookies de funcionalidade para se lembrar das suas preferências de idioma e/ ou os seus detalhes de login.

Cookies de medição e desempenho Estes cookies são usados ​​para coletar informações para analisar o tráfego no nosso site e entender como é que os visitantes estão a usar o nosso site. Por exemplo, estes cookies podem medir fatores como o tempo despendido no site ou as páginas visitadas, isto vai permitir entender como podemos melhorar o nosso site para os utilizadores. As informações coletadas por meio destes cookies de medição e desempenho não identificam nenhum visitante individual.